Texto por: Thiago Oliveira
O ser humano é, antes de tudo, dual. Dual em sua simplicidade, dual em suas múltiplas facetas. Qualquer aspecto do humano, social, psicológico, histórico, político, artístico, seja qual for, revela em de si alguma dualidade. Um sub-aspecto de um traço do humano sempre terá, em determinado momento, seu oposto contraditório se manifestando. Temos, assim, situação e oposição na política, luz e sombra na pintura, a dialética histórica, o dualismo psicofísico das visões transcendentais, e por ai vai.
O fato de termos conflitos em nós, qualquer que seja sua natureza, remete ao fato que estamos sempre em luta com nosso interior e conseqüentemente, com o mundo que nos rodeia.
Psicologicamente, podemos inferir que há um lado obscuro em nós que custamos querer enxergar. É, segundo a Psicologia Analítica de Jung, a nossa sombra.
A sombra representa aspectos negativos do nosso ser, paralela a uma realidade que preferimos não abordar. São nossos defeitos, características desprezadas, sentimentos reprimidos, memórias dolorosas, bem como características positivas que, quaisquer que sejam os motivos, não conseguimos trazer a tona.
Como a sombra faz parte de nós, mesmo enjaulada e reprimida, ela não deixa de nos influenciar. Como na natureza, se algo existe, existe sombra quando exposto à luz. O que sabemos em nós ser iluminado (qualquer que seja a conotação dada a esta palavra) revelará, em algum momento, a sombra correspondente.
Lidar com a sombra é algo muitas vezes doloroso. Nosso eu, nossa consciência, nosso ego, nós, estamos sempre em luta contra essa força imperativa da natureza. Ao tempo em que a alma se destina a iluminar a própria sombra (sim, creio que tudo se destina ao equilíbrio e a algo maior...), pelo princípio da evitação do desprazer estamos sempre plantando a semente da discórdia interna – fonte de toda a sorte de sofrimentos e doenças mentais individuais e coletivas que vemos por ai.
Há diversas maneiras de conhecer o mundo. Desvendar seus segredos. Temos a ciência, a religião do profano. A filosofia é a mãe. Temos a religião, abordando o sagrado. Há a arte, que unifica a tudo e a todos, sem exigir explicações. Usamos a arte, bem como suas manifestações, para acessar o mundo externo e o mundo externo – incluindo nosso lado negro, nossa face sombria, nossa outra face.
Nesse contexto, gostaria de abordar o papel do gótico. O termo gótico (do latim gotticu) refere-se, de forma pejorativa, aos Godos, povo bárbaro que semeou a destruição da pax romana e seu império do ocidente. Na idade média, passou a significar tudo que se opusesse à perfeição. Passou a significar o negativo, o diabólico, o maléfico, o mau, o desprezado, o caótico. Gótico é horror e paixão. Seria o mau, o mal, o irracional
Ora, oposto da perfeição, mau, negativo, maléfico, caótico... Estamos falando da sombra! Sombra como sinônimo de horror (pela conotação negativa no sentido amplo da palavra) e paixão (pela violência das emoções e aspectos comumente envolvidos). A subcultura e a arte gótica dela derivada são modos de acessar a sombra e, em ultima instância, de agregá-la à consciência e transformá-la em algo “bom”. É a isso que se destina a mente, é a isso que se destina a vida.
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Há, contudo, um aspecto particular da cultura gótica que me chama atenção. A arte gótica e o gótico como filosofia de vida ganharam força no mundo ocidental nos anos 70. Nos anos 80, poderiam ser encontrados elementos góticos em todos os substratos artísticos e cultuais da humanidade. Na música, no vestuário, no comportamento social, nas artes, nas religiões, no lazer... Isso porque estamos sempre em contato com nossa sombra. Latu senso, ser gótico é viver sistematicamente a nossa sombra.
No mundo globalizado e tecnológico, os videogames impõem-se, há quase quatro décadas, como um importantíssimo meio de acesso, diria que quase que direto, à nossa fantasia e à nossa sombra. Daí ser natural uma contínua explosão artística ligada a esse objeto de lazer.
Nos anos 80, surgiu no Japão uma série de jogos de videogame chamada Castlevania. Tal série é a única no mundo a ter um jogo correspondente a cada um dos consoles já produzidos.
O jogo aborda a luta dos componentes do clã Belmont, natural da Europa medieval, encarnando diversas jornadas ao longo dos séculos no mito do herói que luta contra o lado negro da humanidade, representada pelo Drácula e criaturas afins. Castlevania nada mais é do que uma constelação artístico-tecnológica da luta do herói humano, presente em todos nós, contra a sombra vampiresca que nos suga a vida e, literalmente, foge do desprazer (ao fugir do sol).
O Drácula está em nós. É um símbolo da nossa sombra, e lutar contra ela é um papel intransferível de todos os homens. Nosso vampiro é o “dark side of our moon”. Ela (sombra) é a besta enjaulada, tal como a fera em seu castelo. Acessarmos nossa sombra é tão difícil quanto entrar no castelo e enfrentar o Drácula. Devemos estar prevenidos, bem armados e cientes do que podemos encontrar.
A intuição profunda da existência deste conflito está presente em todos nós. Por que será que as histórias de vampiro, nesses tempos tão conturbados, fazem tanto sucesso? Porque sempre nos atraímos de modo desproporcionalmente condescendente por personagens artísticos e históricos (quando não reais) tão grotescos e brutais?
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Sempre fui fascinado pela vertente musical da série Castlevania. A música dos jogos sempre me remeteu a mundos de criaturas fantásticas e guerreiras, onde, com horror e emoção, lutaríamos contra a parte negra da humanidade (Drácula) que, em ultima instância, como vimos, representa a parte negra em nós (nossa sombra). Cheguei inclusive, em 1995, a escrever uma história completa de RPG (Role Play Game) sobre o tema.
Quando joguei Super Castlevania IV, em 1994, e vendi meu super Nintendo em 1996, recordo que por muitos anos vibrava de emoção só de lembrar da musiquinha da primeira fase. Era minha luta contra o mal! Era minha fantasia oras! E (o melhor de tudo) tinha uma trilha sonora!
Encontrar os emuladores de videogame em 1997 me permitiu matar toda a saudade. E nunca, desde então, deixei de me influenciar pelo universo gótico de Castlevania. Flertar com o gótico é, também, unir opostos (não só luz e sombra).
Observe a subcultura vampiresca dentro do gótico. O que seria juntar Heavy Metal com cultura medieval? O que seria, então, apresentar vampiros como seres de bom gosto que apreciam boa decoração, belas mulheres, obras de arte, partituras ao piano e orquestra? O que seria apresentar vampiros como seres tementes a deus e literalmente pálidos de culpa contra as atrocidades praticadas? O que seria um vampiro apaixonar-se por uma mortal, e colocar como objetivo maior de sua meia-vida preservar sua natureza viva, virgem da morte? O vampiro quer sugar o sangue. Mas não para destruir. Ele quer ter a vida do vivo. Quer voltar à vida! Quer ser a luz! Ele quer estar nos sol, e se aproxima daqueles que o fazem. Este aspecto vampiresco do gótico precisa ser observado.
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Esta semana, pesquisando sobre Castlevania, descobri algo que sempre intuí que acabaria aparecendo: Castlevania: The Concert (http://www.castlevaniaconcert.com/). Trata-se de uma banda de rock completa acompanhada de uma orquestra, também completa, executando algumas obras da japonesa Kinuyo Yamashita, compositora dos temas da série.
Tamanha foi minha felicidade quando vi que a obra prima da orquestra era justamente The Simon Belmont Theme! (Ela mesma. A musiquinha da primeira fase de super Castlevania IV do Super Nes que permeava anonimamente minha lama musical há quase 20 anos).
The Simon Belmont Theme - Musica original (Super Castlevania IV – Super Nes)
http://www.youtube.com/watch?v=5dauRYb9il8
The Simon Belmont Theme – Versão Heavy Metal
The Simon Belmont Theme – Castlevania The Orchestra
A sombra é linda!Mais um vídeo
The Dracula’s castle
---------------------Thiago Oliveira é médico psiquiatra, músico, compositor e um grande chocólatra convidado.
Seu blog: http://juramentodigital.blogspot.com/
Taí uma excelente explanação sobre a intensa relação entre o Heavy Metal e a Música Clássica! Um, o famigerado, o agressivo, o subversivo, o malvado, mas tão belo, rico e intenso gênero do rock'n'roll. O outro o belo, o puro, o elementar, o lírico, a leveza de instrumentos nobres e eruditos: a música clássica. Ambos belíssimos em igual grandeza! Ambos profundos em complexidade, em capacidade de mover e retratar sentimentos, um o sombra, o outro a luz. Dualidade da arte mais nobre, da capacidade criativa de grandes gênios. Até mesmo o símbolo dito "diabólico" do heavy metal (a famosa "mão chifruda") tem suas origens nas religiões orientais, como o budismo e hinduísmo e foi muito usada para afugentar demônios e eliminar obstáculos do caminho. Dual não? Mesmo o budismo, que não afirma a existência de Deus, prega que devemos todos alcançar o nirvana, ou seja, o equilíbrio completo com a natureza. Levando para os cristãos o equilíbrio completo com a natureza (ou seja a energia vital maior do nosso planeta) estamos nos encontrando com Deus. Assim sendo pela simbologia budista a "mão chifrada" nada mais é que a remoção dos demônios e obstáculos do caminho para encontrar o nirvana - ou seja o Deus cristão em outra leitura. Até o símbolo maior do heavy metal é DUAL - tem sua sombra e sua luz. As versões são lindas, o texto é maravilhoso. Parabéns meu velho!
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