domingo, 28 de abril de 2013

Felicidade clandestina

Este conto ajudou a mudar a minha vida. Rendeu uma música (homônima) e duas animadas sessões em grupo com os pacientes com os quais trabalho. Rendeu dois posts no meu blog e inúmeras conversas e discussões com colegas que tinham interesse no tema.
Clarice Lispector versa com maestria sobre os temas ligados à auto-estima, busca da felicidade, (des)realização, determinação, sentido de vida e sentido da vida.
A felicidade não deve ser buscada. Ela não está no fim. Ela está em todos os momentos, inclusive os infelizes. Não estando no fim e não sendo o começo, está no meio. Não é o objetivo. É o processo. Se a buscarmos como uma finalidade, (e não como uma dádiva), ela sempre será sombria, obscura e clandestina. Será sempre fulgás, ilegítima e infeliz. Clandestina.

Here we go!




FELICIDADE CLANDESTINA

por Clarice Lispector

Ela era gorda, baixa, sardenta e de cabelos excessivamente crespos, meio arruivados. Tinha um busto enorme, enquanto nós todas ainda éramos achatadas. Como se não bastasse, enchia os dois bolsos da blusa, por cima do busto, com balas. Mas possuía o que qualquer criança devoradora de histórias gostaria de ter: um pai dono de livraria.
Pouco aproveitava. E nós menos ainda: até para aniversário, em vez de pelo menos um livrinho barato, ela nos entregava em mãos um cartão-postal da loja do pai. Ainda por cima era de paisagem do Recife mesmo, onde morávamos, com suas pontes mais do que vistas. Atrás escrevia com letra bordadíssima palavras como "data natalícia" e "saudade".

Mas que talento tinha para a crueldade. Ela toda era pura vingança, chupando balas com barulho. Como essa menina devia nos odiar, nós que éramos imperdoavelmente bonitinhas, esguias, altinhas, de cabelos livres. Comigo exerceu com calma ferocidade o seu sadismo. Na minha ânsia de ler, eu nem notava as humilhações a que ela me submetia: continuava a implorar-lhe emprestados os livros que ela não lia.

Até que veio para ela o magno dia de começar a exercer sobre mim uma tortura chinesa. Como casualmente, informou-me que possuía As reinações de Narizinho, de Monteiro Lobato. Era um livro grosso, meu Deus, era um livro para se ficar vivendo com ele, comendo-o, dormindo-o. E, completamente acima de minhas posses. Disse-me que eu passasse pela sua casa no dia seguinte e que ela o emprestaria.

Até o dia seguinte eu me transformei na própria esperança de alegria: eu não vivia, nadava devagar num mar suave, as ondas me levavam e me traziam.

No dia seguinte fui à sua casa, literalmente correndo. Ela não morava num sobrado como eu, e sim numa casa. Não me mandou entrar. Olhando bem para meus olhos, disse-me que havia emprestado o livro a outra menina, e que eu voltasse no dia seguinte para buscá-lo. Boquiaberta, saí devagar, mas em breve a esperança de novo me tomava toda e eu recomeçava na rua a andar pulando, que era o meu modo estranho de andar pelas ruas de Recife. Dessa vez nem caí: guiava-me a promessa do livro, o dia seguinte viria, os dias seguintes seriam mais tarde a minha vida inteira, o amor pelo mundo me esperava, andei pulando pelas ruas como sempre e não caí nenhuma vez.

Mas não ficou simplesmente nisso. O plano secreto da filha do dono da livraria era tranqüilo e diabólico. No dia seguinte lá estava eu à porta de sua casa, com um sorriso e o coração batendo. Para ouvir a resposta calma: o livro ainda não estava em seu poder, que eu voltasse no dia seguinte. Mal sabia eu como mais tarde, no decorrer da vida, o drama do "dia seguinte" com ela ia se repetir com meu coração batendo.

E assim continuou. Quanto tempo? Não sei. Ela sabia que era tempo indefinido, enquanto o fel não escorresse todo de seu corpo grosso. Eu já começara a adivinhar que ela me escolhera para eu sofrer, às vezes adivinho. Mas, adivinhando mesmo, às vezes aceito: como se quem quer me fazer sofrer esteja precisando danadamente que eu sofra.

Quanto tempo? Eu ia diariamente à sua casa, sem faltar um dia sequer. Às vezes ela dizia: pois o livro esteve comigo ontem de tarde, mas você só veio de manhã, de modo que o emprestei a outra menina. E eu, que não era dada a olheiras, sentia as olheiras se cavando sob os meus olhos espantados.

Até que um dia, quando eu estava à porta de sua casa, ouvindo humilde e silenciosa a sua recusa, apareceu sua mãe. Ela devia estar estranhando a aparição muda e diária daquela menina à porta de sua casa. Pediu explicações a nós duas. Houve uma confusão silenciosa, entrecortada de palavras pouco elucidativas. A senhora achava cada vez mais estranho o fato de não estar entendendo. Até que essa mãe boa entendeu. Voltou-se para a filha e com enorme surpresa exclamou: mas este livro nunca saiu daqui de casa e você nem quis ler!

E o pior para essa mulher não era a descoberta do que acontecia. Devia ser a descoberta horrorizada da filha que tinha. Ela nos espiava em silêncio: a potência de perversidade de sua filha desconhecida e a menina loura em pé à porta, exausta, ao vento das ruas de Recife. Foi então que, finalmente se refazendo, disse firme e calma para a filha: você vai emprestar o livro agora mesmo. E para mim: "E você fica com o livro por quanto tempo quiser." Entendem? Valia mais do que me dar o livro: "pelo tempo que eu quisesse" é tudo o que uma pessoa, grande ou pequena, pode ter a ousadia de querer.

Como contar o que se seguiu? Eu estava estonteada, e assim recebi o livro na mão. Acho que eu não disse nada. Peguei o livro. Não, não saí pulando como sempre. Saí andando bem devagar. Sei que segurava o livro grosso com as duas mãos, comprimindo-o contra o peito. Quanto tempo levei até chegar em casa, também pouco importa. Meu peito estava quente, meu coração pensativo.

Chegando em casa, não comecei a ler. Fingia que não o tinha, só para depois ter o susto de o ter. Horas depois abri-o, li algumas linhas maravilhosas, fechei-o de novo, fui passear pela casa, adiei ainda mais indo comer pão com manteiga, fingi que não sabia onde guardara o livro, achava-o, abria-o por alguns instantes. Criava as mais falsas dificuldades para aquela coisa clandestina que era a felicidade. A felicidade sempre ia ser clandestina para mim. Parece que eu já pressentia. Como demorei! Eu vivia no ar... Havia orgulho e pudor em mim. Eu era uma rainha delicada.

Às vezes sentava-me na rede, balançando-me com o livro aberto no colo, sem tocá-lo, em êxtase puríssimo.

Não era mais uma menina com um livro: era uma mulher com o seu amante

segunda-feira, 22 de abril de 2013

Guerra Santa




Pensamento do Muçulmano: A verdade está no alcorão. Alá é o criador de tudo no universo. Devo rezar cinco vezes por dia, submeter-me ao jejum anual no mês do Ramadão, pagar dádivas rituais e efetuar, se possível, uma peregrinação à cidade de Meca uma vez na vida. Nós sabemos que Cristo não é um messias nem foi enviado por Deus, por isso que o nosso calendário não se baseia no seu nascimento. Um dia os católicos descobrirão a verdade... 

Pensamento Católico: A verdade está na Bíblia. Deus enviou Jesus para erradicar o pecado do mundo. Ele morreu para nos libertar. Devo ir à missa para pedir a bênção de Nossa Senhora, confessar-me ao padre, ouvir atentamente seu sermão e aceitar a hóstia como representação do sangue e corpo de Cristo. Sempre que posso adquiro um suvenir ou tento montar o meu oratório para abençoar minha casa. Essa é a verdade. Só Jesus salva! Tenho pena dos espíritas. Um dia eles descobrirão a verdade... 

Pensamento Espírita: Deus é toda a energia do universo. As almas seguem uma hierarquia evolutiva regida por Deus. A evolução se dá pela dor ou pelo amor. A depender do nível de evolução a capacidade de abstração do universo aumenta. Existem karmas e obsessão. Podemos de acordo com nossa fé pedir orientação aos nossos irmãos de luz. Eles nos protegem das energias negativas sempre que podem. Existe o livre arbítrio e cada um responde por seus atos. Os ateus são o que são porque não captaram as manifestações da vida mostrando quem é Deus. Com a evolução ele acabará por aceitar a existência de Deus... 

Pensamento Ateu: A religião é um terrível regulador social. A igreja desenhou com sangue sua história no mundo: Matou, extorquiu, manipulou e até uniu-se aos nazistas. As pessoas são cegas! Não entendo... a história mostra tudo de negativo que a peste católica trouxe ao mundo e ainda assim elas entram como cordeiros nas igrejas e se deixam manipular. É uma prisão. Deus não existe e não há como provar sua existência. Mas eu tenho certeza que um dia as pessoas irão abrir os olhos e se libertarão dessa realidade aprisionadora... 

Pensamento Budista: Devo evitar o mal, fazer o bem e cultivar a própria mente. O objetivo é o fim do ciclo de sofrimento, samsara, despertando no praticante o entendimento da realidade última - o Nirvana. A moral budista é baseada nos princípios de preservação da vida e moderação. O treinamento mental foca na disciplina moral (sila), concentração meditativa (samadhi), e sabedoria (prajña). Apesar do budismo não negar a existência de seres sobrenaturais (de fato, há muitas referências nas escrituras Budistas), ele não confere nenhum poder especial de criação, salvação ou julgamento à esses seres, não compartilhando da noção de Deus comum à maioria das religiões. Um dia todas as demais religiões entenderão que é a assim que a vida funciona... 


E a razão?


Pra ilustrar, segue uma música gravada pela minha antiga banda de HardCore, a BSk. Composição: Stefan Brunner / Têco Lopes / Fabrício Primaz



segunda-feira, 8 de abril de 2013

Eu não tenho medo de Marx



É engraçado como a maior parte das pessoas têm esteriotipado a imagem do marxista. Geralmente é um indivíduo com não mais que 40 anos, boina na cabeça, camisa com a estampa de Che Guevara, calças largas e sujas, sapatos velhos nos pés, barbudo e afiliado a qualquer centro acadêmico estudantil. Hehhehehe...isso é Marx? É no mínimo uma interpretação indecente de tudo que Marx já disse.

Não sou marxista e nem mesmo tenho certo apreço pelo modelo. Contudo, entendo a importância das discussões políticas e econômicas, assim como, a compreensão da realidade nas palavras desse intelectual. Karl Max nos deu a possibilidade para refletir profundamente a natureza do capitalismo e imaginar uma nova dinâmica de funcionamento da sociedade ou nas palavras do próprio Marx: “interpretar o mundo é transformá-lo”.

Hoje trago a porposta de conhecer um pouco melhor as ideias desse pensador. E para explicar Marx convidei uma das mulheres mais inteligentes que tive a oportunidade de conhecer nos últimos anos. Daiana Brito é bacharel em economia e mestranda em planejamento do desenvolvimento pela UFPA. Deixo claro que ela não possui nem um fio de cabelo marxista e quando fiz o convite disse a seguinte frase: “...isso é só uma tentativa de responder ousadamente alguma coisa em Marx...” abaixo ela irá descrever em termos econômicos (teoria do dinheiro, processo produtivo, lucro e mais-valia) o pensamento de Marx.

“Para Marx o mundo é estruturado por pressupostos de mercadoria e faz-se necessário compreender o caráter dual das mercadorias (por possuírem valor de uso e valor de troca) entretanto, existe uma diferenciação entre dinheiro e demais mercadorias.  A teoria do dinheiro em Marx começa com a explicação a partir da caracterização das relações mercantis da essência do dinheiro: o cerne da questão é que o dinheiro tem poder social.

Desse modo, por mais que o dinheiro apresente  um vinculo estrito com o valor,  ele se movimenta  de maneira autônoma para além do valor, ainda que este seja sua essência; além disso, de maneira dialética o dinheiro apresenta  determinantes próprios.

Por trás do equivalente geral está o trabalho humano, de modo que o dinheiro se caracteriza como  uma expressão do trabalho socializado, ademais para o Marx o dinheiro é a mercadoria que exerce papel de equivalente geral , definindo-se a partir da ideia de moeda-mercadoria destacando-se como forma independente do valor de troca, o que lhe permite certa contraposição quando comparada  as demais mercadorias enquanto medida de valor. Desse modo, o dinheiro é um fim em si mesmo que aparece como um intermediário para realizar transações.

 É importante salientar que não é através do dinheiro que Marx determina os preços a partir do valor, mas, imprescindivelmente a partir da distribuição da mais-valia produzida não do trabalho necessário para a produção de cada mercadoria, mas, sobretudo da proporção do capital investido no processo de igualação das taxas de lucro que são constantemente distintos.  Dessa observação, pode-se explicar inclusive porque em um sistema capitalista o preço e o valor se diferem. 

Nessa perspectiva, o dinheiro enquanto mercadoria tem a característica de servir como medida de valor das mercadorias facilitando, por exemplo, o intercambio entre  mercadorias e, logicamente, a realização do capital: o dinheiro inicia e finaliza o ciclo completo de reprodução do capital e faz-se importante para criação de valor dentro de um processo produtivo.  

Enfim, Marx estabeleceu condições para a compreensão do funcionamento lógico do dinheiro, sobretudo a partir da circulação do capital  expressando  tensões dinâmicas provenientes dentro do próprio processo produtivo e da relação de conflito entre capitalistas e trabalhadores. 

O sistema econômico é orientado pelo valor e a partir disso, o  trabalho  é a fonte de valor do sistema. Assim, para que exista o lucro é necessário que exista a mais-valia, pois o lucro é uma consequência do processo produtivo e o principal fenômeno da mais-valia. 

O valor do trabalho é determinado pelo tempo de trabalho socialmente necessário envolvido para manter o trabalhador vivo e a manutenção continua desse sistema. 

Em outras palavras, interpretando o trabalho como  fonte de obtenção de riqueza, inclusive a mercantil, ele é o responsável  por possuir propriedades que correspondem ao duplo caráter da mercadoria (valor de uso e valor de troca).

 A teoria do valor baseado no trabalho foge ao sentimentalismo ou a dogmas morais que tentam valorizar o trabalhador como agente  meramente explorado dentro do sistema,  mas faz-se  imprescindível entender  que a teoria do valor  encontra seu fundamento no papel  do trabalho como base permanente da existência da sociedade. 

Para o Marx, o valor representa o custo de produção de uma mercadoria à sociedade, dado que toda mercadoria tem um valor e a troca representa simplesmente o seu reflexo. 

Nessa perspectiva, o fato de que a força de trabalho é a força motriz da produção, esse custo só pode ser medido pela quantidade de trabalho que foi impregnada à mercadoria. Essa dinâmica da compra e venda da força de trabalho é que permite o surgimento da mais-valia e é possível dizer ainda que a força de trabalho é vendida pelo seu valor.

Dado que a força de trabalho representa a fonte de mais-valia, quanto mais elevada à composição orgânica de capital, menor a taxa de lucro. Desse modo, enquanto a produtividade do trabalho aumenta, a taxa de lucro cai.

Dito isso, a diferença entre o valor produzido pelo trabalhador e o valor da força de trabalho representa a mais-valia. Após o pagamento dos custos envolvidos no processo produtivo, a mais-valia aparece como lucro.

Marx mostra que o sistema se orienta pela taxa de lucro e desse modo, as relações sociais se transformam em relações entre coisas. Do mesmo modo, o valor da força de trabalho se converte em salário como pagamento do próprio trabalho e a mais-valia (produto do trabalho) se transforma em lucro, ou seja, um produto do capital. 

A partir disso, o processo produtivo se torna processo de produção de mais-valia e pode ser racionalmente fundamentado pelo fato da capacidade da mais-valia gerar valor, dado que a eficiência da gestão do processo de trabalho é medida pela esperança do lucro.

Uma das implicações do processo de produção de mais-valia é o que o Marx demonstrou como “auto-expansão do valor”, em que o capital se comporta como uma  acumulação de mais-valia proveniente do trabalho (fonte de valor), e essa acumulação  pode se transformar em, por exemplo, dinheiro, mercadorias ou até meio de produção; e frequentemente  certa combinação desses três elementos. Assim, a dinâmica  capitalista  pode assegurar  acumulações posteriores.

Outra implicação relevante  do processo de produção da mais-valia é que embora o lucro se realize  quando a capacidade substantiva da mais-valia é transformada, o lucro também tem a capacidade de determinar a mais-valia, através da inversão de papeis em que este deixa de ser determinado e passa a ser determinante da mais-valia.”


Considero de extrema importância a contribuição de Marx, sobretudo o pensamento a respeito da formação e estrutura do capital como vimos acima. Essas ideias deveriam ter maior circualção e um nível mais intenso de debate, pois é a essência daquilo que vivemos. Em seu livro "COMO MUDAR O MUNDO”  Hobsbawn nos diz:Não podemos prever as soluções para os problemas que o mundo enfrentará no século XXI, mas para que haja alguma possibilidade de êxito devemos fazer-nos as perguntas de Marx”.