domingo, 17 de março de 2013

Conto de fadas moderno moderno – o garoto e o pássaro azul (Uma semi-autobiografia – homenagem a Luciana Sant’Ana)



Há um herói em cada um de nós, pois a vida é feita de lutas e desafios. Maiores ou menores. Mais ou menos dolorosos. Mais ou menos prazeirosos. Mas sempre há uma grande jornada. Pretendo com este texto homenagear minha alma gêmea e mostrar como creio o destino recompensar o trabalho e a persistência.


__________________________________________________


Era uma vez um garoto. Garoto moreno, cabelos negros, soltos ao vento. Pré-adolescente, olhar lânguido e sonhador. Sonhava e olhava. Pensava. Via. Vivia. Via e vivia demais.
Vivia sozinho. Não era sozinho. Mas queria ser só. Seu olhar se voltava para as coisas do mundo, e boa parte do mundo que via pertencia somente a si. Aquele era seu mundo.
Sua ilha. Seu tesouro. Sua fantasia.
Era seu mundo. Alegre, feliz, brincalhão e inteligente. Sempre a brincar em suas calças azuis e suas camisas brancas.

Mas havia algo errado.
Parte do garoto era só. E o garoto não queria ser só. Queria o mundo. Queria uma companhia. Sonhava e ansiava por ela. Olhava e sonhava. Sonhava demais. Queria demais.
Queria conhecer os pais. Queria mais do que conhecia. Queria conhecer o mundo, mais do que conhecia. Queria sentir os destinos. Mais do que lhe era dado. Queria amar, compartilhar, construir. Queria um amor. Um amor conjugal. Uma alma gêmea.
Ardia num grande querer. Ardia uma grande vontade.
Queria muito uma alma gêmea. Sua ausência era um espinho. Nos pés, nos olhos, no coração. Doía e vivia. Sabia que seria chegado seu destino.
O garoto morava em uma grande casa. Sua mansão era situada em um grande terreno, onde cresciam goiabeiras, amendoeiras, coqueiros e mangueiras. Seus pais, amorosos e carinhosos, o provia de todos os cuidados materiais e afetivos. Eram o mundo do garoto em parte com a família.
Mas parte dele era só. Era seu mundo. E ele queria compartilhar com sua alma gêmea. Mas a limitação da idade e da realidade real não a deixava se aproximar. Sabia que ela a esperava, em algum lugar, de algum modo, em algum caminho, num tempo qualquer.
Premido por sua solidão, amparado pelo universo fantástico de sua vida pré-adolescente urbana, o garoto imaginava. O garoto tinha lampejos. Pensava no universo, nas estrelas no mundo. Imaginava ser um herói. Um grande caçador. Tinha um arco azul. Uma flecha branca. Subia no telhado da casa por uma das goiabeiras, e, na parte mais alta do topo da casa, flechava um pássaro azul que por ali sobrevoava.
O pássaro era real. Mas só ali passava quando o garoto subia. O garoto não sabia, mas só ele o via. O pássaro só por ele era visto. Era visível, no mundo existia. Em seu mundo. Existia.
Passaram os anos.
Um belo dia, o pássaro se aproximou mais que de costume. O garoto não conseguiu atingi-lo. E após múltiplas tentativas, tomado de súbito cansaço, adormeceu.

Veio o seu sonho.
Sonhou que estava no mesmo telhado da sua casa. O pássaro azul, não tendo sido flechado após múltiplas tentativas, o tomou nos braços e o levou, através das nuvens e visões de rios e planícies, a uma grande e sinistra floresta, numa planície no alto da montanha.
Abandonado na orla, o garoto entrou em desespero, clamando pelo pássaro.
Sem obter resposta, desatou a caminhar. Caminhou por sete dias e sete noites, sobrevivendo da água dos riachos e dos pequenos frutos encontrados nos arbustos. A floresta lhe era familiar, mas não conseguia fazer ideia de onde a conhecia.
Após caminhar perdido, sem encontrar trilha, saída ou sentido, lembrou-se do seu amor. O amor que queria tanto compartilhar. Pediu ao amor força. E a força veio, continuando a andar.
Não sabia que tinha chegado ao coração da floresta.
Na clareira, avistou um lindo lago, de águas calmas, mas negras e profundas. No meio do lago havia uma pequena ilha, e no meio desta uma bela fonte de mármore branco. 
Encantado, tomado de fascínio pela beleza inusitada naquela floresta sombria, esqueceu que não sabia nadar e mergulhou na água. Lutou, se debateu, e insistiu. Queria chegar à ilha. Foi então que percebeu, após instantes de desespero, que a profundidade se ajustara lentamente à altura do eu pescoço.
Ao chegar ao seu destino, contemplou a fonte. Nas águas límpidas e cristalinas formou-se lentamente a imagem de uma linda garota. Olhos negros, cabelos castanhos, pele lisa. A garota dos seus sonhos! A alma gêmea!
Emocionado, fixou-a nos olhos. Ela sorriu. Seguiu-se instantes de contemplação mútua, de reconhecimento, de admiração. e então a garota começou a falar.
A menina disse-lhe que um pássaro mágico, “de cor azul”, a aprisionou na fonte, e que ela só seria libertada caso o primeiro viajante que a achasse encontrasse as penas mágicas e as mergulhassem nas águas da fonte.
 - Precisa encontrar o pássaro azul e a águia branca, disse. Só a união das suas penas pode restituir-me a liberdade.
E então a imagem da garota desapareceu.
Atormentado pelo seu sumiço, implorou que retornasse. Mas via apenas a água límpida e o fundo transparente da fonte branca. Tomado de paixão e encanto, mesmo sem saber como, prometeu ajuda-la. Prometeu que a salvaria e a levaria consigo.
E então, tomado de súbito cansaço, adormeceu aos pés da fonte.
Sonhara estar nadando por um lago. O mesmo lago. Vestia a mesma calça azul e camisa branca. Nadava pelo lago. Buscava sofregamente a margem, a qual parecia cada vez mais distante.
Não desistiu. Havia uma garota que, não lembrava onde nem como, prometera salvar.
Percebeu que estava um pouco mais velho e mais forte.
Saiu do lago decidiu a encontrar uma solução para a vaga sensação de perdição que lhe ia ao intimo. Onde estava? Para onde ia? Porque a imagem daquela garota lhe invadia a mente? Não sabia. Sabia que precisava seguir em frente.
E seguiu. Por mais sete dias e sete noites.
Finalmente, viu um clarão. Chegara ao outro lado da floresta!
Mal sabia o que lhe aguardava.
Algumas dezenas de metros da borda da floresta, havia um grande abismo. O horizonte se descortinava escuro e infinito. O céu não tinha cor. O sol não vinha de lugar algum. A luz era pálida e fraca. Uma desconfortável sensação de crepúsculo o seguia.
Caminhou. Caminhou muito! Mas não sabia aonde ir nem o que fazer. Apenas o desconforto, o medo e o pesar lhe invadindo o coração, sem explicação, sem destinação, sem destino.
Mais uma vez premido pelo cansaço, ajoelhou-se e implorou por ajuda. Não pedia a alguém. Pedia a ninguém. Pedia ao mundo. Nunca tinha se preocupado em pedir ajuda à natureza. Mas intuía que algo zelava pelo seu destino. Algo que lhe era acessado pelas belas memórias guardadas nos tesouros do mundo criado na sua infância distante.
Ouviu um grasnado rasgar o céu. E aliviado pela repentina visão, percebeu ao longe o grito de um pássaro. Apertou os olhos. Era um pássaro azul.
Correu. Após um tempo que não soube contar, virou a esquina do bosque e deu de frente com um enorme carvalho.
O espetáculo era paralisante devido à sua terrível beleza. Chegara à arvore primeira. A primeira árvore da floresta, que dera origem direta e indireta a todas as outras.
Nos seus galhos, chiavam e cantavam pássaros. Pássaros de todas as cores.
Não encontrara o pássaro azul. Contudo, algo em si o fez mirar o topo do carvalho. E lá ela estava. A mais bela guardiã da floresta. A águia branca!
Tudo se passou muito rápido. Entre examinar seus sentimentos e suspeitas, a lembrar de que, por algum motivo, precisava se aproximar desta águia, um grande e negro gavião rasgou os céus em alta velocidade.
Ia em direção à águia. Ia caça-la. Ia mata-la.
O garoto, travestido de coragem e desespero, lembrou-se da sua infância. Lembrou que sabia, mas não como, construir um arco e usar as flechas. E assim o fez, utilizando-se dos galhos de um arbusto próximo.
Não haveria outra chance. Não poderia errar. Mirou, aprumou o arco e disparou o tiro.
Certeiro. Interceptara o gavião a poucos metros da apavorada e então indefesa águia branca. Sua queda foi seguida pelos olhares admirados das aves presentes.
E então houve um grande alarido. Os pássaros de todos os galhos voavam e chiavam, claramente numa grande festa! O garoto foi invadido de imensa paz. Ele a salvara. Em alguns instantes, a águia branca alçou voo e desceu lentamente em sua direção.
Ofuscado por sua luz, não percebeu que a águia ia mudando de tamanho e forma. Uma forma humana. A forma de uma garota. Uma garota de olhos negros, cabelos castanhos, e pele lisa. Em teus sonhos, jurava conhecê-la.
- Amor humano, leve rapaz. Salvaste-me. Testaste-te. Agora tens o destino nas mãos.
E entregou ao garoto um par de penas. Uma pena azul e uma branca, que retirara do seu próprio flanco.
- Segue teu coração, luta por tua vida. Um dia, serás quem quer, terás o que és.

...

Revestido de energia e esperança, o garoto retornara à floresta, onde vagou por sete longos anos e tornou-se um homem. Aprendera a caçar e a sobreviver na mata. Nos momentos difíceis, sempre tinha a impressão de estar sendo vigiado. Sabia que, nesses momentos, em suas vistas ou pensamentos, um pássaro azul voaria a cantar em sua proximidade.

...

Passaram-se os tempos. O garoto, agora um homem feito, jovem e vigoroso, vivia solitário.
Aprendera a ser paciente. A viver o mundo real. Obserava o devir do clima e das estações do ano. A floresta lhe parecia cada vez menos misteriosa. Tornara-se seu amigo e protetor.
Até que, em uma clara e límpida manhã de inverno, encontrou um lago. Estava frio. O lago tinha águas rasas e cristalinas, com uma fonte de mármore branco na ilha do meio. Lembrou-se imediatamente (mas vagamente) do lugar. Lembrou-se da garota. Lembrou-se de tê-la encontrado em tantos lugares, que havia perdido a conta. Nos sonhos? Nas memórias? Nas matas? Não imaginava.
Correu e pulou no lago. Um grande senso de obrigação e objetivo o direcionava. Nadava com sofreguidão. Chegando à fonte, olhou o fundo. Nada. Nenhum objeto. Nenhuma imagem. Nada.
Neste momento, sentiu pesar o seu bolso. E de lá retirou objetos de que nem lembrava existir: uma pena azul e uma pena branca, que lhe fora doada por uma bela águia que tinha salvo de um furioso gavião negro.
E lembrou-se de suas palavras. Agora, era senhor do seu destino! Chorou. Chorou de alegria.
E entre lágrimas de felicidade, mergulhou as penas nas águas brancas e frias. Ao toque lhe pareceu agradável e fresca. Bebeu. Banhou-se, e saiu. E novamente, adormeceu aos pés da fonte.

...

Havia sete anos que acordara aos pés daquela fonte. O garoto (já um homem maduro), decifrara quase todos os obstáculos da floresta. Conhecia seus habitantes e tornara-se seus amigos. Vivia em plena harmonia com as plantas e animais. Não havia notícias de nenhum pássaro negro por aquelas paragens, nem nenhuma ameaça àquele reinado de paz.
Contudo, o garoto continuava a sentir-se muito só. Não sabia quem era, nem de onde tinha vindo. Não conhecia sua origem nem porque ali vivia. Não sabia porque era como era.
Mas sabia que queria amar. Compartilhar, construir. Queria um amor. Uma alma gêmea. E por isso, estava em paz.
Ajoelhou-se. Começara a chover. Começara a chorar. Desejava ardentemente, como nunca, estar na companhia de um amor que jamais conhecera. Jamais mesmo? Não saberia.
Encharcado, embalado pelo balanço da chuva, sob seus pingos adormeceu. Um sono pleno de conforto e descanso. Um sono de muitos anos. Sonhara com um pássaro azul. Belo, grande e majestoso. Sábio, virtuoso e pleno. Um pássaro grandioso e de presença nunca vista.
O pássaro içou-o no ar, e parecia penetrar-lhe os pensamentos. Testaste-te. Serás quem quer, terás o que és.

...

E assim foi.
E foi uma longa viagem, de muitos dias e muitas noites, por largas montanhas e belas planícies, vista por entre as brumas brancas das nuvens. O garoto sonhava, e voltava a ser o que era. Um belo garoto, Alegre, feliz, brincalhão e inteligente. Era seu mundo.
E seu mundo nunca mais seria o mesmo.

...

Acordou. Estava no telhado de uma casa que há muito conhecia. Uma casa grande de quintais com árvores. Sua casa.
Lembrara que ali moraram seus pais, e também moravam seus filhos e netos. Aquele garoto, de cabelos ao vento, de calças azuis e camisas brancas, para sempre povoaria seus sonhos, seu coração e sua alma.
Passou a mão enrugada pelos cabelos brancos e pela barba espessa. O sol ia alto. Dormira demais! Precisava descer para o almoço!
Trepando nos galhos da antiga goiabeira, alcançou o solo. Queria abraçar a sua esposa, que o esperava. Sua alma gêmea. Sua companheira de longos anos, de olhos negros, cabelos castanhos, pele lisa.
Abraçaram-se.
E, juntos, foram felizes para sempre!



Escrito por Thiago Campos de Oliveira em 17/03/2012

quarta-feira, 13 de março de 2013

A classe mérdia


Há algum tempo que venho refletindo sobre o boom de moralismo e “bom-mocismo” que foi pulverizado por todos nos e-mails e redes sociais. Todos gostam de compartilhar suas opiniões políticas, sociais, antropológicas, filosóficas ou qualquer coisa, como se aquela frase feita, aquele powerpoint ou aquela foto definissem exatamente o seu comportamento moral e ético perante aos olhos da sociedade (ou até de Deus!). Acontece que historicamente a maior parte da população brasileira tem se comportado de modo passivo e egoísta (ok! Estou sendo taxativo e generalista) e quase nunca nos movemos para conquistar evoluções sólidas dentro da estrutura social. O brasileiro é sim passivo, arrogante e egoísta em sua maioria, somos sombras de corrupção, somos Gérsons nas mais extremas camadas da formação moral dos indivíduos. Tudo bem, não vou chover no molhado de novo...

O que tem me divertido muito ultimamente é observar o comportamento virtual e o real de pessoas mais próximas de mim. Nos facebooks ou salas de discussões nós quase sempre trabalhamos nossa luz, ou seja, aquilo que temos de positivo, nossos pensamentos progressistas, éticos, ilibados. Mas quando estamos dentro da esfera individual é que a grande sombra do brasileiro se manifesta. É no escurinho do cinema, no anonimato das multidões, nas possibilidades de não sermos notados.

Aconteceu-me algo extremamente pitoresco numa disciplina que peguei na minha pós-graduação que acho válido comentar aqui. Foi levantada uma discussão exatamente sobre o comportamento (ou mau comportamento) do povo soteropolitano – aqui vale a pena ressaltar a arrogância da classe média ou pseudo-burguesa num senso de exclusão absurdo – levando-se em consideração diversos aspectos. Um deles foi o trânsito. “Como o baiano é agressivo e mal educado no trânsito!” – eram as frases reverberadas na sala. Conversa vai, conversa vem, um colega que havia morado no Canadá manifestou-se falando a ordem do trânsito e do transporte público das cidades onde ele morou. Depois relatou sobre a educação do povo em shoppings centers que, ao finalizar seu lanche, imediatamente retiram a bandeja e põem numa lixeira deliberadamente, coisa e tal. Finalizando a aula tive a oportunidade de pegar uma carona com esse mesmo colega até a minha casa. No trajeto preguei no banco do carona: eram cortadas em cima de cortadas, trocas de faixas sem sinalização, coladas nos fundos dos carros da frente! Uma verdadeira aula de autoritarismo no trânsito. Minha cabeça explodiu!! Como que aquele bom samaritano que acabara de verbalizar os defeitos dos conterrâneos e enaltecer a cultura polida dos canadenses jogou todo seu discurso no lixo em minutos?!


Há algum tempo vi uma entrevista de Rodrigo, vocalista do Dead Fish, onde ele dizia que não acreditava na política nos moldes que conhecemos, mas sim na micropolítica – ou seja, aquela que praticamos diariamente e que tem um impacto direto no mundo ao nosso entorno. E acho que esse é o ponto: o que fazemos quando ninguém está olhando? O que fazemos quando não há interesse de recompensa? Então continuaremos a postar mensagens de protesto e desrespeitar qualquer um no nosso entorno em nome do nosso conforto e bem estar? Continuemos então a colocar o rei da nossa barriga na frente do interesse coletivo, sejamos moralmente podres e mal-educados. Assim sendo, eu paro meu carro na vaga de idoso e deficiente, pego meu smartphone e compartilho aquela foto exigindo que um político cumpra com suas obrigações e pare de me roubar.