segunda-feira, 2 de julho de 2012

O pagode e a música da Bahia


“Oh meu Deus!! Pagode é triste, deplorável! Que letras são essas?? Mosquito não late, mosquito não morde, mosquito só, só pica! É a pior música do mundo!”. Quem de nós já ouviu isso da boca de amigos ou mesmo já vociferou tais palavras? Há a eterna briga entre roqueiros, pagodeiros, axezeiros, emepebeiros e o escambal, cada um com seus pontos de vista a respeito de um dos temas mais passionais do mundo: o gosto musical. Mas para falar desse contexto aqui na Bahia, um local riquíssimo nessa arte tão magnífica, temos que voltar alguns anos no tempo e entender um pouco mais da origem de suas idiossincrasias...

Movimentos sociais expressivos envolvendo grupos negros perpassam toda a História do Brasil. Contudo, até a Abolição da Escravatura em 1888, estes movimentos eram quase sempre clandestinos e de caráter radical, posto que seu principal objetivo era a libertação dos negros cativos. Visto que os escravos eram tratados como propriedade privada, fugas e insurreições, além de causarem prejuízos econômicos, ameaçavam a ordem vigente e tornavam-se objeto de violência e repressão não somente por parte da classe senhorial, mas também do próprio Estado e seus agentes.

Falando de movimentos culturais, registram-se os primeiros indícios das festividades quando os negros desembarcados na antiga capital e os emigrados da Bahia se reuniam perto do porto carioca para cantar e dançar nas horas de folga, ao som de instrumentos rústicos. Eram as primitivas rodas de samba nas quais as baianas se destacavam, que de dia vendiam quitutes em tabuleiros à noite mostravam toda sua cadência.
Estas rodas foram crescendo e os batuqueiros formados por gente humilde subiram os morros. Apareceram então as primeiras denominações carnavalescas: cordões, blocos e ranchos, corsos.

Contrastando sugiram as sociedades: formadas por branco de classe média e aristocratas que se reuniam para discutir negócios, jogar cartas e preparar o carnaval. Nos desfiles lançavam desafios umas as outras em versos de poetas conhecidos, como Olavo Bilac e Emílio de Menezes. Faziam sátiras aos governos e defendiam movimentos sociais, como a libertação dos escravos. A riqueza do carnaval brasileiro deve muito as sociedades que faziam festas coloridas, com mulheres arrumadas, fantasias luxuosas, carros alegóricos e fogos de artifícios.

Abaixo segue um trecho do filme Amistad que retrata com cruel realismo como eram feitos os transportes de escravos entre o continente africano e a costa da América:


Historicamente, as práticas culturais (religião, música, dança e outras formas) têm sido um dos poucos veículos de expressão relativamente acessíveis aos negros (não apenas ativistas ou adeptos do movimento negro) na sociedade brasileira. Na Bahia os blocos afros (como Ilê Aiyê,Filhos de Gandhi, Muzenza, Araketu e Olodum ) foram frutos da organização cultural de filhos e netos de escravos, que juntamente com a imersão religiosa do candomblé, chegaram tocando ritmos africanos como o ijexá, brasileiros como o maracatu, o samba e caribenhos como o merengue.


Feito o apanhado histórico podemos iniciar uma leitura mais antropologia e sociológica da estrutura social baiana. Juntamente com a aristocracia portuguesa veio a sua cultura artística, entretanto em um contexto como o relatado acima o choque foi inevitável. No livro “Notas Dominicais tomadas durante uma residência em Portugal e no Brasil nos anos de 1816, 1817 e 1818 (parte relativa a Pernambuco)”, o cronista francês Tollenare assim descreve a música na Bahia:

“A música de sociedade é medíocre quanto á execução. Tocam piano e arranham a guitarra de um modo lamentável; mas, cantam toleravelmente em italiano. Os ouvidos são musicais, percebe-se-o na harmonia que reina nas peças de varias vozes.Ha cantigas brasileiras peculiares que são muito agradáveis; (...) Chamam-nas de modinhas; as palavras são ordinariamente anacreônticas e as melodias graciosamente tocantes. Os negros têm também algumas melodias bonitas; a sua musica os transporta a ponto de lhe ocasionar uma embriaguez delirante, e, entretanto, frequentemente, não dispõem de outro instrumento além de uma cabaça cheia de calháos.”

Ainda comenta:

“Não existem órgãos monumentais; de ordinário, um simples piano serve para acompanhar os coros; mas, por ocasião da menor cerimônia, uma magnífica orquestra executa peças agradaveis e sempre renovadas. (...) Os músicos, isoladamente, são medíocres; mas, guardam bom compasso.
As mulheres não cantam; quando não ha castrados são os homens que executam os falsetes, e saem-se melhor do que o lamentável canto gregoriano soluçado nas nossas igrejas de província, na França.”


Ok! Ponto de reflexão: sociedade baiana com seus alicerces fincados na mais pura segregação socio-economico-cultural, cultura africana latente em todos os guetos; cultura europeia correndo a aristocracia baiana. Tem algo semelhante com o que vemos hoje? Algo em comum entre os R$ 150,00 pelo ingresso da cadeira Z200 do show de Chico Buarque no TCA e as festas de camisa colorida?

Desde os primeiros criolos (os filhos de escravos africanos - criolos: criados na terra) nascidos nesta terra até o vendedor de amendoim que pernoita em Dinha no Rio Vermelho, nenhum desses afro-descentes teve sequer a menor possibilidade de acesso à educação, e por força do contexto, foram compelidos a cultivar seus costumes de modo caótico e reativo. As complexidades musicais lecionadas em reformatórios nas vielas de Viena ou nos palacetes de Paris para as crianças nunca passaram perto das crianças brasileiras, que debaixo do sol escaldante e rodeados de pobreza aprendem a batucar desde os primeiros respiros.

Deixo esse texto em aberto, caro leitor, para que você mesmo tire suas conclusões. Tenho minhas predileções musicais mas me abstenho de pô-las aqui para que de maneira alguma eu possa enviesar seu crivo. Se o Brasil é um resumo do mundo, a Bahia possui idiossincrasias que navegam entre o deplorável e o magnífico.

Abaixo seguem dois vídeos: o primeiro é de um programa independente de Web TV que tem como objetivo cobrir a cena musical de Salvador, sem preconceito, traçando um retrato do que anda sendo feito pelas bandas de cá.



O outro video é um produtor musical chamado Rodrigo Itaboray que vem disponibilizando vídeos em seu canal no YouTube sobre produção musical, mercado da música e diversos temas sobre esta seara. Nesse vídeo ele abre sua opinião a respeito do comportamento dos que agridem a música popularesca do Brasil na internet.



Para massagearmos nosso senso de humor segue uma charge divertidíssima de Maurício Ricardo do site charges.com.br



3 comentários:

  1. Tema extremamente complexo que merece muita reflexão e análise detalhada. Concordo que o fator cultural pode explicar o desenvolvimento musical baiano. Mas, podemos dizer que é apenas isso? Não. Há outros elementos envolvidos nesse contexto. O fator econômico também é importante no desenvolvimento da musica de qualquer povo, nação, sociedade. Posso citar o exemplo da música também negra norte americana que ganhou contornos mais sofisticados e não apenas batuques. É duro escutar Nessun Dorma no calor de 30 graus, o estômago pedindo alimento, o cachorro do vizinho uivando e o vendedor de quebra-queixos passando pela rua... hehheheehehe. A música popular, chula, ruim, de gosto duvidoso sempre existiu e sempre existirá, seja na Bahia, no Nordeste, Sul, Sudeste, no Brasil ou no exterior. Há alguns anos que não ligo muito se determinada banda ou música é boa ou ruim, apenas escuto, faço minhas pesquisas e traço meu setlist, pois considero a música como um alimento da alma e não um estandarte que precisa ser defendido até a morte. Se ao escutar: “mosquito não late, mosquito não morde, mosquito só, só pica!” faz alguém ser mais feliz...Bravo!

    http://www.youtube.com/watch?v=KhSUeIg-API&feature=related

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  2. Muito bom!
    Acho que no fim das contas, somos malabaristas tentando encontrar a resultante de diversos vetores (não quis colocar as aspas): musica de pobre x musica de rico; musica malfeita x musica bem construída; musica que "merece" x musica que "não merece"; musica de gueto x musica aristocrática; musica popular x musica clássica; banda pre fabricada x produção autentica; musica nacional x música estrangeira; musica que dá dinheiro e musica que não dá; musica criativa x mais do mesmo; musica profissional x musica amadora; músicos profissionais x músicos amadores; compositores x intérpretes; banda de frente x banda de apoio; qualidade x equipamento...
    e por ai vai. Em outras vertentes desse eixo, há o "consumidor", aquele que compra os discos e as músicas e vai aos shows, e os fornecedores: os empresários, produtores e músicos. O dinheiro nunca será imprescindível para que haja música, mas ajuda bastante. Nesse ajudar, até chegar ao lucro, tudo está valendo. São aí que entram todas aquelas dicotomias.
    Acho que ter isso em mente é um passo para que, aliado ao "nos fazer feliz" que George relatou, vivamos felizes nesse universo musica-arte-dinheiro-sociedade-historia.
    foi mal se foi muita viagem heheheh

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  3. Exatamente, brotheres! Concordo com George que não é apenas e tão somente o fator colonização culmina na produção musical de uma localidade, mas dela podemos compreender profundamente a construção do indivúduo (que é fruto do meio - mas não em sua totalidade). E justamente por isso que deixei o texto em aberto, sem colocar minhas considerações no final, para que cada um construa seu senso crítico sobre essa situação. Na verdade desde a postagem ontem a noite até agora já pensei em mexer uma dezena de vezes nesse post, mas preferi mantê-lo como está, pelo carater abrangente e pouco conclusivo do mesmo.

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