terça-feira, 31 de julho de 2012
Cuidado com o que toma!
"Não vos inquieteis, pois, pelo dia de amanhã
Porque o dia de amanhã cuidará de si mesmo"
Mateus, cap. 6, vs. 34
É fato consumado a ideia de que toda sociedade, cidade, estado, povo, grupo, família ou indivíduo intuem de que, no mundo, algo, intangível ou intransferível, deve ter o papel de "curar". Padres, pastores, pajés, sacerdotes em geral, militares ou outros são estereótipos desses arquétipos.
O médico, que por séculos encarnou bem esse papel e era respeitado por isso, vem perdendo espaço. Essa perda de espaço tem um lado bom, caracterizado pelo aumento do acesso da população à informação sobre saúde e medicina. O lado ruim é quando isso não se reverte numa boa assitencia à saúde e, pior, quando a pratica é ostensivamente burlada e menosprezada.
Para ilustrar este quadro, compartilharei uma experiência que vivi em 2008, quando ainda morava em São Paulo/SP
...
Terça-feira. Farmácia. Caminho de casa. Intenção: comprar manteiga de cacau. Eis que um rapaz, ao meu lado, interpela um vendedor (ou balconista, sei lá).
- Queria um remédio
- Você tem receita?
- Não, é que sinto um negócio no estomago.
Disse isso apontando a barriga. Onde fica mesmo o estômago? Permaneci de soslaio assistindo a cena. Eis que o vendedor pergunta:
- O que você sente?
- Ah... (hesitando) sei lá, um mal estar.
- Então tenho o que você precisa (!!!)
E perante à minha anônima, inexpressada e inexpressiva indignação, o vendedor leva o cliente - "Paciente" a uma prateleira. Observa, pondera, analisa e, por fim, retira três medicamentos diferentes.
- Esse é bom para o estômago, esse pra nausea e esse pro fígado
- Pro figado?
- É. Esse gosto ruim que voce sente na boca é coisa de figado. Pode levar que é tiro e queda!!
- Que bom! Por quanto fica?
- Deixa ver... (puxou a calculadora...) com o desconto, fica 22 reais (!)
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A duração da cena, essa que acabei de descrever, foi de 9 minutos. Isso mesmo. Entrei na farmácia às 19:14, às 19:15 me tornei assistente acidental dessa "consulta". Às 19:23 o cliente-"paciente" estava no caixa, pagando a "consulta" e a medicação.
Desanimado, esqueci a manteiga e fui para casa, pensamentos a mil. De que vale uma receita médica? de que vale uma consulta médica? seriam as consultas-de-balcão-de-farmácia e as consultas médicas-de-verdade extremos de um continuum entre o conhecimento médico-científico sistemático e o conhecimento "médico"-popular? De que vale um médico estudar pra caramba durante 6 anos, perder noites, e ainda passar pelo menos 2 anos se especializando, se o próprío paciente e o balconista da farmácia (polos extremos da escalada comercial desde que alguem resolve achar que tem um sintoma), se "entendem" em 9 minutos?
De acordo com os sintomas relatados pelo "paciente-da-farmácia", altamente inespecíficos (nauseas, desconforto abdominal, "gosto ruim da boca"), seria válido uma anamnese, um exame físico e a suspeição, a rigor, de uma centena de doenças! Será que estou vivendo uma tremenda hipocrisia, onde a receita médica vale menos que o papel-dinheiro, na analogia de que a saúde não merece ser estudada, e sim "resolvida"?
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Vick. Cebion (lembra do Zico?). Energil C. Lactopurga ("até minha pele fica mais bonita". Doril (é... a dor "sumiu"!). Benegripe (É gripe?"). Mirador (até Pelé entrou nessa). Iorgutes para o intestino (Activia devolve seu dinheiro). Xarope pra tosse. Estimulantes da libido. Biotônico. Tudo na televisão! Tudo no rádio! Tudo na mídia! Tudo na boca da mãe, da avó, da vizinha, do balconista da farmácia! tudo da boca do POVO! E se o sintoma persistir (apenas se, seja ele o que for, inclusive um câncer), o médico deve ser procurado!
Ao meu ver, tais propagandas são tão nocivas à sociedade como uma propaganda de cigarro. Trata-se, em primeira, ultima e definitiva análise, de estímulo à automedicação, visando ao lucro. Automedicação é um ato fortemente contra-indicado pelos médicos desde que existe medicina, sendo aceitável apenas como alívio temporário enquando se busca auxílio especializado (o que deve ser feito o mais rápido possível). Meu consolo é a constatação de que, na maioria das vezes, os sintomas que tais medicações pretendem "curar", antes do "médico ser consultado", tem como causa doenças de baixa morbidade (intolerância alimentar, resfriados, infecção intestinal, dor de cabeça por tensão, etc). De qualquer maneira, não me parece honesto! Ao meu ver, os responsáveis deveriam ser presos!
Seria exagero? Tá bom... então que tais propagandas fossem proibidas! Trata-se de uma manipulação velada e não planejada da cultura do povo e do desespero do cidadão, quando se vê doente. "Toma um remedinho que resolve..." "Ai meu deus, será que tem uma farmácia aberta a essa hora?" "liga pra fulana e pergunda a ela o que ela deu pro fulano naquele dia, quando ele teve a mesma coisa". É...
O pior é que ainda fazem gráficos e animações que vão ao ar em horário nobre, enviando mensagens subliminares, estimulando o consumo! Eis os graficos do vick "penetrando o peito" e acabando com a tosse. Eis os gráficos do shampoo "penetrando o couro cabeludo" e transformando um cabelo seco e feio em um cabelo liso, macio e sedoso. Eis os esquemas coloridos mostrando como o iorgute (qual e mesmo aquela marca?) "penetrando o inetestino" e fazendo funcionar o ritmo inestinal, tal como pás de moinho (essa realmente é horrivel). São muitas.
A humilhante mensagem "Se persistirem os sintomas, o médico deve ser consultado" nao fica nem 1 segundo no ar! A propaganda quer dizer: "se vire sozinho, se automedique, dê seu jeito! Pergunte à vizinha, à vovó, à mamãe ou ao balconista da farmácia o que tomar. Faça uma consulta por telefone com o medico do seu plano de saúde (promédica, vitalmed... meu deus, consulta por telefone!). Se voce achar que nao resolveu, procure o médico". O médico! logo ele, o ultimo da lista! Justamente o mais preparado, o que mais estudou, o que mais conhece o corpo humano, seu adoecimento físico e mental e o reconhecimento de tais males! Justamente aquele ao qual a lei confere chancela para dar diagnóstico e tratamento. Não é irônico?
...
Intestino preso, gripe, tosse, febre, dor de cabeça são sintomas muito comuns, geralmente atribuido a doenças leves. Contudpo, podem ser sintomas de doenças graves e potencialmente fatais! Cancer de pulmao. câncer de intestino, apendicite, diverticulos, pneumonia, tuberculose, e mais centenas de doenças podem justificar tais sintomas. O médico deve sempre ser procurado de imediato, pois só ele tem o conhecimento adequado para cruzar dados demográficos, biológicos, epidemiológicos e sociais do paciente para chegar a um diagnóstico. A gripe pode ser uma pneumonia grave! o intestino preso pode ser um cancer de cólon! Cuidado!!
Existem muitas doenças altamente prevalentes na população que recebem pouca atenção por parte da mídia. Prefeiro um hipertenso na novela da globo. Sim, um hipertenso idoso, com dificuldade para tomar aquele mundo de remédios, com medo de ter o segundo infarto, sabendo que a mãe morreu de "derrame" há cinco anos atras... preferem colocar uma adolescente com um transtorno alimentar como bulimia nervosa. Embora de alta morbidade e de difícil tratamento, tal doença está muito longe de ter o impacto social, cultural, financeiro e na saúde pública em comparação a hipertensão arterial ou diabetes, por exemplo.
Se querem permitir que as empresas e laboratórios façam propagandas esdruxulas e mal intecionadas na TV, que pelo menos as obriguem a fazer programas de prevenção e tratamento para doenças de maior impacto. Pelo menos.
...
Pra fim de conversa: qual a origem disso tudo? qual sua base? qual o elemento-matriz desse contexto caótico? Creio que tudo tem como base, como raiz, a cultura do brasieiro. A cultura do menor esforço, do atalho, do jeitinho, do caminho mais rápido... Isso é histórico, é coletivo, é parte de nós. Chego a dizer que é intrinseco. Enfim...
É óbvio que tais empresas de medicamentos, iorgutes, e outras "perfumarias médicas" tiram grande proveito dessa cultura. Claro: injusto, antiético, imoral, ganancioso. "Roubam" o dinheiro do povo, com sua anuência. E o pior de tudo: por seu próprio ato e vontade.
Que deus nos ajude!
segunda-feira, 2 de julho de 2012
O pagode e a música da Bahia
“Oh meu Deus!! Pagode é triste, deplorável! Que letras são
essas?? Mosquito não late, mosquito não morde, mosquito só, só pica! É a pior
música do mundo!”. Quem de nós já ouviu isso da boca de amigos ou mesmo já vociferou
tais palavras? Há a eterna briga entre roqueiros, pagodeiros, axezeiros,
emepebeiros e o escambal, cada um com seus pontos de vista a respeito de um dos
temas mais passionais do mundo: o gosto musical. Mas para falar desse contexto
aqui na Bahia, um local riquíssimo nessa arte tão magnífica, temos que voltar
alguns anos no tempo e entender um pouco mais da origem de suas
idiossincrasias...
Movimentos sociais expressivos envolvendo grupos negros
perpassam toda a História do Brasil. Contudo, até a Abolição da Escravatura em
1888, estes movimentos eram quase sempre clandestinos e de caráter radical,
posto que seu principal objetivo era a libertação dos negros cativos. Visto que
os escravos eram tratados como propriedade privada, fugas e insurreições, além
de causarem prejuízos econômicos, ameaçavam a ordem vigente e tornavam-se
objeto de violência e repressão não somente por parte da classe senhorial, mas
também do próprio Estado e seus agentes.
Falando de movimentos culturais, registram-se os primeiros
indícios das festividades quando os negros desembarcados na antiga capital e os
emigrados da Bahia se reuniam perto do porto carioca para cantar e dançar nas
horas de folga, ao som de instrumentos rústicos. Eram as primitivas rodas de
samba nas quais as baianas se destacavam, que de dia vendiam quitutes em
tabuleiros à noite mostravam toda sua cadência.
Estas rodas foram crescendo e os batuqueiros formados por
gente humilde subiram os morros. Apareceram então as primeiras denominações
carnavalescas: cordões, blocos e ranchos, corsos.
Contrastando sugiram as sociedades: formadas por branco de
classe média e aristocratas que se reuniam para discutir negócios, jogar cartas
e preparar o carnaval. Nos desfiles lançavam desafios umas as outras em versos
de poetas conhecidos, como Olavo Bilac e Emílio de Menezes. Faziam sátiras aos
governos e defendiam movimentos sociais, como a libertação dos escravos. A
riqueza do carnaval brasileiro deve muito as sociedades que faziam festas
coloridas, com mulheres arrumadas, fantasias luxuosas, carros alegóricos e
fogos de artifícios.
Abaixo segue um trecho do filme Amistad que retrata com
cruel realismo como eram feitos os transportes de escravos entre o continente
africano e a costa da América:
Historicamente, as práticas culturais (religião, música,
dança e outras formas) têm sido um dos poucos veículos de expressão
relativamente acessíveis aos negros (não apenas ativistas ou adeptos do
movimento negro) na sociedade brasileira. Na Bahia os blocos afros (como Ilê
Aiyê,Filhos de Gandhi, Muzenza, Araketu e Olodum ) foram frutos da organização
cultural de filhos e netos de escravos, que juntamente com a imersão religiosa
do candomblé, chegaram tocando ritmos africanos como o ijexá, brasileiros como
o maracatu, o samba e caribenhos como o merengue.
Feito o apanhado histórico podemos iniciar uma leitura mais antropologia
e sociológica da estrutura social baiana. Juntamente com a aristocracia portuguesa
veio a sua cultura artística, entretanto em um contexto como o relatado acima o
choque foi inevitável. No livro “Notas Dominicais tomadas durante uma
residência em Portugal e no Brasil nos anos de 1816, 1817 e 1818 (parte
relativa a Pernambuco)”, o cronista francês Tollenare assim descreve a música
na Bahia:
Ainda comenta:
“Não existem órgãos monumentais; de ordinário, um simples
piano serve para acompanhar os coros; mas, por ocasião da menor cerimônia, uma
magnífica orquestra executa peças agradaveis e sempre renovadas. (...) Os músicos,
isoladamente, são medíocres; mas, guardam bom compasso.
As mulheres não cantam; quando não ha castrados são os
homens que executam os falsetes, e saem-se melhor do que o lamentável canto
gregoriano soluçado nas nossas igrejas de província, na França.”
Ok! Ponto de reflexão: sociedade baiana com seus alicerces
fincados na mais pura segregação socio-economico-cultural, cultura africana
latente em todos os guetos; cultura europeia correndo a aristocracia baiana. Tem
algo semelhante com o que vemos hoje? Algo em comum entre os R$ 150,00 pelo ingresso da cadeira Z200 do show de Chico Buarque no TCA e as festas de camisa colorida?
Desde os primeiros criolos (os filhos de escravos africanos - criolos: criados na terra) nascidos nesta terra até o vendedor de amendoim que
pernoita em Dinha no Rio Vermelho, nenhum desses afro-descentes teve sequer a
menor possibilidade de acesso à educação, e por força do contexto, foram
compelidos a cultivar seus costumes de modo caótico e reativo. As complexidades
musicais lecionadas em reformatórios nas vielas de Viena ou nos palacetes de
Paris para as crianças nunca passaram perto das crianças brasileiras, que
debaixo do sol escaldante e rodeados de pobreza aprendem a batucar desde os
primeiros respiros.
Deixo esse texto em aberto, caro leitor, para que você mesmo
tire suas conclusões. Tenho minhas predileções musicais mas me abstenho de
pô-las aqui para que de maneira alguma eu possa enviesar seu crivo. Se o Brasil
é um resumo do mundo, a Bahia possui idiossincrasias que navegam entre o deplorável
e o magnífico.
Abaixo seguem dois vídeos: o primeiro é de um programa
independente de Web TV que tem como objetivo cobrir a cena musical de Salvador,
sem preconceito, traçando um retrato do que anda sendo feito pelas bandas de
cá.
O outro video é um produtor musical chamado Rodrigo Itaboray
que vem disponibilizando vídeos em seu canal no YouTube sobre produção musical,
mercado da música e diversos temas sobre esta seara. Nesse vídeo ele abre sua opinião a respeito do comportamento dos que agridem a música popularesca do Brasil na internet.
Para massagearmos nosso senso de humor segue uma charge
divertidíssima de Maurício Ricardo do site charges.com.br
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